Sobre

A evidente monocronia do cenário já não esconde as diferentes nuances dos personagens. 36 vozes se entrechocam em Curitiba. Psicanalistas, prostitutas, estudantes, professores, políticos, padras e alquimistas dividem as ruas de uma cidade que camufla toda violência, onde a religião transborda como redenção impossível. Durante 21 dias, irrompem histórias de amor, reencontros e desespero. Os personagens se defrontam com a mística dos sonhos, enlouquecem, mergulham na religiosidade da experiência enteógena, dialogam com o leitor sobre os caminhos da arte e debatem a diversidade sexual como expressão identitária. A simetria dos textos orquestra as notas de uma fuga conturbada e múltipla, caracterizada pela profundidade psicológica e pelo confronto de persectivas. Seis vozes para a Fuga é um livro que se abre a incontáveis leituras, das quais o leitor por certo não sairá indiferente.




Di quest'onda che rifluische dai ricordi
la città s'imbeve come una spugna e si dilata.

Italo Calvino


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Resenha de Ernani Fritoli

doutor em Literatura Comparada pela USP

Multitextualidade: o termo não define mas caracteriza essa pequena biblioteca que é Seis vozes para a fuga. Borgiana, calviniana e pirandelliana, uma biblioteca em que os olhos leem Haas, mas nos ouvidos cochicham e sibilam, trazidas à tona de outros tempos e espaços, fantasmas de tantas vozes – Dante e Pessoa, Hugo e Balzac, Castañeda e Mann, Stoker e Trevisan, Márquez e Lispector, Pavese e Leminski, Freud e Queneau, Ungaretti e Perec... Clássicos e alternativos, assim como os performers que a cada sexto de um sexto assumem e avivam com sua morte ou imortalizam com sua vida uma das vozes que se alternam nos 36 fragmentos desse romance cuja estrutura complexa, simétrica e entrelaçada, imita a de uma fuga bachiana.

Exemplo acabado de literatura combinatória,
Seis vozes para a fuga é um romance múltiplo.

Cada breve narrativa pode ser lida per se, com uma semi-autonomia de conto. Seis vezes seis vozes se revezam variando estilos que mantêm sempre a tensão de uma prosa ora filosófica ora psicanalítica, técnica ou lírico-poética, sem jamais perder a harmonia, cada vez colorindo uma nova tessela do mosaico que formará, no multitexto, o grande desenho, ou fuga, final (final?).


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Resenha de Daniel Lacerda

doutor em Estudos Literários pela UFPR

“Assim, as admoestações visam sobremodo à entrega, e não à clareza do que se pretende enunciar. Deixemos de ser barrocos”.

Extraída de um dos trinta e seis solilóquios (sub-divididos em seis grupos de seis vozes / caracteres cada um) que compõe o romance de estreia de Lucas Haas Cordeiro, o dizer em questão pode, creio, ser tomado como um anti-mote a sintetizar a obra, mais ainda do que a bela citação de Italo Calvino, que lhe serve de abertura. Mas, por que um anti-mote? Porque são precisamente as ‘admoestações’ verborrágicas que perpassam toda a obra, a qual, na verdade, nunca deixa de ser barroca. Muito pelo contrário: o espraiar-se dos solilóquios pelas suas mais de trezentas páginas, ora tergiversando acerca de questões psicanalíticas que afligem os personagens-narradores (todos os relatos são narrados em primeira pessoa), ora vagando por pontos peculiares da Curitiba natal do autor (claro influxo ‘vampiresco’ de Dalton Trevisan, mencionado, direta e indiretamente, em vários pontos das falas), ora, como no fragmento acima citado, tecendo considerações metalinguísticas acerca do próprio fazer literário, atestam claramente sua verve barroquista – o barroco, pérola irregular, no dizer de Severo Sarduy, que caracteriza-se precisamente pela

profusão sígnica, sempre mais afeita à entrega
do que à clareza de seus enunciados.

E o narrar barroquista de Lucas acha-se pautado pela forma musical da fuga, já explicitada em seu título. Tal processo composicional, que tem na obra de Johan Sebastian Bach seu arauto maior, é, aqui, traduzido intersemioticamente para o código verbal, determinando seu teor polifônico, segundo o qual um motivo dominante é inicialmente exposto e, posteriormente, desenvolvido por diversas vozes contrapontísticas. Em Seis Vozes Para a Fuga, o motivo introdutório é um certo ritual ayahuasca, no qual tomaram parte, no réveillon de 2012, todos os trinta e seis actantes dos relatos, os primeiros dos quais começam por descrever suas ‘mirações’, seus envolvimentos sensoriais ali experimentados. A partir de então, os depoimentos contrapõem-se, expandindo-se semântica e sintaticamente.

Aos olhos e ouvidos do leitor e ouvinte antenado com as experimentações da prosa contemporânea, talvez o fator mais sedutor da(s) narrativa(s) seja exatamente esta sua polifonia, que lhe dá um tom de inacabamento, de abertura composicional, o qual, tomado de empréstimo da fuga musical (e, é preciso que se diga, desenvolvido de forma personalíssima, incomum para um romance de estreia de um autor tão jovem como Lucas), rompe com a narrativa-contadora-de-estória da tradição do romance ocidental, para alçar o que poderíamos metaforicamente chamar de um vôo cego anti-narrativo, a permear, por exemplo, entre nós, a escritura de um Antonio Geraldo Figueiredo Ferreira, cujo romance também inaugural, intitulado As Visitas que Hoje Estamos, guarda, por seu teor polifônico-contrapontístico, pontos em comum com as vozes em fuga de Lucas Haas Cordeiro.

Pois que as ‘admoestações’ verbais destas vozes venham a se desdobrar barroquisticamente em outras invenções, levando a lavra do autor a outros võos tão cegos e, precisamente por sua ‘cegueira’ às demandas da prosa convencional, tão ousados como os deste volume que, por sua ousadia escritural, tão favoravelmente surpreende.


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Resenha de Paulo Urban

doutor em Estudos Literários pela UFPR

Seis Vozes para a Fuga é a mais nova obra literária do brilhante escritor curitibano, também poeta, Lucas Haas Cordeiro, 26 anos, leonino de nascimento, ascendente em Aquário. Do autor li seu primeiro livro, Sussurro & Codeína, 2006, uma estreia já madura, e li ainda ano passado nas agradáveis tardes de outono em que, lapiseira em mão, passei no Embu das Artes, lendo e meditando seus versos, outros poemas seus inéditos, que me impressionaram dado à densa verve que os perpassa, associada à profundidade dos temas, sempre estranhos e incomuns, sobre os quais Lucas Haas escolhe 'poetar', e que nos põem

em sintonia com aquele mavioso Cielo, vibrante e forte,
cuja melodia nos convida a deixar a prosaica Terra

onde vivemos para adentrar no sinistro Hades que nos espera, a partir do que, viajando por áreas míticas interditas, quem sabe um dia, ascendidos deste abismo de nós mesmos, possamos migrar redimidos ao centro mandálico do Idílico Conclave dos anjos e arcanjos que nos assistem - e nos confortam - em nossas humanas agruras, cáusticas e aflitas.

Seis Vozes para a Fuga, a mais recente produção deste escritor nada romântico, senão fantástico, é para ser lida com escuta aberta e senestésica. Só que agora, em vez daquele misterioso Cielo a que sua portentosa poesia dava voz, Lucas Haas, mestre e maestro, rege um fabuloso coro de 36 vozes que se enredam e se (des)equilibram numa harmonia esquadrinhada em seis diferentes tonalidades vocais, repleta de acordes impactantes e dissonâncias expectantes que se resolvem num texto arrebatador de hiperventilado fôlego literário. Lucas Haas é ainda tradutor e revisor de textos (adoro esta combinação) e, mais que tudo, é arte uraniana em prosa avançada, impredictable e incomum, um dos arautos ele próprio desses novos tempos de escrita holográfica que se anunciam nesta nova Era do Aquarismo. Está dado o recado.




A literatura combinatória & a leitura de um tempo caótico